Um verdadeiro cristão deve prezar a Bíblia como registro fiel da revelação de Deus, e procurar entender seus ensinamentos e pratica-los. Já os apóstolos e primeiros cristãos entendiam assim (II Timóteo 3:16-17, II Pedro 1:20-21, I João 1:1-4, etc.). O princípio batista mais importante, que origina todos os outros princípios e doutrinas, é o de que a Bíblia é a Palavra de Deus e nossa regra de fé e prática. A Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira assim define a nossa convicção a respeito da Bíblia: “A Bíblia é a Palavra de Deus em linguagem humana. É o registro da revelação que Deus fez de si mesmo aos homens. Sendo Deus seu verdadeiro autor, foi escrita por homens inspirados e dirigidos pelo próprio Espírito Santo. Tem por finalidade revelar os propósitos de Deus, levar os pecadores à salvação, edificar os crentes, e promover a glória de Deus. Seu conteúdo é a verdade, sem mescla de erro, e por isso é um perfeito tesouro de instrução divina. Revela o destino final do mundo e os critérios pelos quais Deus julgará todos os homens. A Bíblia é a autoridade única em matéria de religião, fiel padrão pelo qual devem ser aferidas a doutrina e a conduta dos homens. Ela deve ser interpretada sempre à luz da pessoa e dos ensinos de Jesus Cristo.” ¹
Contudo, há cultos em que a Palavra de Deus perdeu sua importância e centralidade para a estética. São verdadeiros shows onde o mais importante é satisfazer a necessidade do belo que as pessoas trazem dentro de si. A arte assume o lugar da Bíblia. Há crentes que, embora acreditem que a Bíblia é a Palavra de Deus, não a leem costumeiramente. A pressa ou a preguiça obliteram a Palavra de Deus. Outros há que a leem com profundidade, sabem até discutir seus aspectos teológicos, mas não se preocupam em cumpri-la. É a hipocrisia impedindo os efeitos da Palavra de Deus.
Tudo isto é muito grave, mas creio que pior ainda é a atitude daqueles que, propositalmente, procuram atacar a Bíblia ou distorcer seus ensinamentos. Ainda mais quando se trata de líderes nas igrejas, que deveriam pregar e ensinar a Palavra de Deus, e aproveitando-se de sua posição, trabalham para esvaziar a Bíblia e relativizá-la. Noto dois grupos infiltrados em nosso meio que trabalham para este fim: os de tendência neopentecostal, e os que adotam teologias de caráter neoliberal (teologias contemporâneas fortemente influenciadas por conceitos da teologia liberal). Ambas as tendências têm em comum, além do prefixo “neo”, o seu desprezo à autoridade da Bíblia como Palavra de Deus. Ambas as tendências colocam outros padrões, em igualdade com a Bíblia, ou acima dela, através dos quais devem ser aferidas a doutrina e a conduta dos homens. Assim, tentam construir, embora por vias diferentes, um cristianismo sem a centralidade e a essencialidade da Bíblia.
1. O neopentecostalismo: a experiência pessoal acima das Escrituras
Se perguntarmos a qualquer neopentecostal o que pensa sobre a Bíblia, certamente responderá que é a Palavra de Deus. Entretanto, ela não é a máxima autoridade para eles, pois fundamentam muitas de suas crenças, práticas e decisões em experiências pessoais de caráter extático. “Revelações” por meio de visões, “profecias”, ou “línguas” têm para eles maior autoridade que a Bíblia. Sua interpretação da Bíblia é feita à luz de tais experiências.
No Brasil, o movimento neopentecostal originou-se entre as igrejas pentecostais, cujos cultos possuem ênfase acentuadamente emocional, e cuja membresia era, em sua maioria, oriunda de camadas mais baixas da população, que possuem grande sentimento místico. Nas décadas de setenta, oitenta e noventa, grupos neopentecostais que começavam a formar-se no Brasil receberam influências do exterior e as assimilaram, como os ensinamentos de Kennet Hagin, Benni Him e outros neopentecostais americanos. Valnice Milhomens encarregou-se de difundir a Teologia da Prosperidade, e mais tarde o G 12. Outros surgiram explorando a mídia, e fazendo dela seu principal meio de propagação. Hoje, o neopentecostalismo atinge todas as camadas sociais. Contudo, o importante continua sendo a possibilidade de plena realização pessoal, principalmente material, ainda nesta vida. Qualquer tipo de experiência que, de alguma forma, venha alimentar este tipo de esperança, é tido como de origem divina. Uma “bispa” neopentecostal, pregando em um programa de TV, afirmou que falar em línguas “estranhas” é sinal de que a pessoa pertence a Deus e é por Ele abençoada. Assim, em meio ao pragmatismo do neopentecostalismo, o parâmetro principal continua sendo as experiências emocionais do indivíduo e a sua realização. Alguns neopentecostais utilizam bastante a Bíblia, mas sempre interpretando-a à luz de suas próprias experiências.
Portanto, é comum ouvir-se de quando em vez um neopentecostal isolar o texto do contexto e afirmar “a letra mata, mas o Espírito vivifica” (II Coríntios 3:6b). Trata-se de uma tentativa incoerente de procurar na própria Bíblia uma justificativa para desprezá-la.
2. O neoliberalismo: o contexto contemporâneo fala mais alto
O liberalismo teológico surgiu no final do século XIX. Seu objetivo norteador era fazer uma teologia contextualizada à cultura de sua época, que não se chocasse com os pressupostos racionalistas da ciência natural. Os teólogos liberais entendiam que, para atingirem seu objetivo, uma das necessidades era relegar os aspectos sobrenaturais da fé cristã ao segundo plano, obscurecendo sua importância, ou mesmo aceitar os pressupostos da crítica racionalista e negar sua veracidade. Ao rejeitarem o sobrenatural na fé cristã, rejeitaram também a autoridade infalível das Escrituras, visto que sua autoridade resulta do fato de ser ela o registro da revelação sobrenatural de Deus. Os teólogos liberais não abandonaram completamente a Bíblia, mas criam que ela era resultado do esforço do homem em querer conhecer a Deus, e não faziam dela a única regra de fé e prática. Desenvolveram exegeses dos textos bíblicos orientados pela crítica racionalista e pelo seu esforço de harmonizar a fé cristã com a mentalidade da época.
Compreendiam os dogmas e doutrinas da teologia cristã como resultado da mentalidade de cada época. Assim, não haveria motivo para atrelar a teologia a eles, e a teologia liberal desenvolveu-se aparte das Escrituras e das doutrinas da teologia protestante.
A teologia liberal esvaziou a fé cristã de seu conteúdo transcendente e fundamental. Negando a autoridade das Escrituras como revelação de Deus, relegaram o cristianismo à completa subjetividade, sem qualquer referencial mais objetivo para a fé. Sua reinterpretação de Cristo e dos dogmas deu à fé cristã uma conotação puramente temporal e social. Assim, falharam no seu intento inicial de oferecer uma resposta à crítica racional que assegurasse a continuidade da fé cristã. Segundo Karl Barth, conduziram a fé cristã a um beco sem saída ² . “Assim, no século XIX e início do XX, assistimos na teologia protestante à progressiva e depois total liquidação da essência do cristianismo, que não só, no fim das contas, não se distingue mais das outras religiões como também deixa até mesmo de ser uma religião” ³ .
A teologia liberal influenciou ou originou outras formas de pensamento teológico que também pouco valorizam a Bíblia. Hoje, no meio acadêmico há uma pluralidade de teologias que podem ser chamadas de neo-liberais. Embora não mantenham todas as características do liberalismo, são influenciadas, direta ou indiretamente, por seus conceitos. Há de comum entre elas as tendências de tratar a Bíblia da mesma forma que a teologia liberal a tratava, e de dar mais importância aos problemas sociais estruturais, sem considerar que resultam dos problemas espirituais. É comum encontrar escritores e professores de teologia que não creem na Bíblia como registro infalível da revelação de Deus, e que creem que podemos pautar nossa fé e conduta conforme outras fontes e padrões. Tendem a interpretar a Bíblia segundo o contexto sócio-político e cultural de nossos dias, ao invés de aplicar sua mensagem essencial a este contexto. Via de regra, preferem embasar seus conceitos, ensinamentos e pregações em filosofia, sociologia, psicologia ou antropologia, ao invés de utilizarem tais disciplinas somente como auxiliares à contextualização da proclamação de nossa fé. Tais conceitos e tendências não estão restritos aos meios acadêmicos, mas enfraquecem alguns púlpitos, de onde são sutilmente ensinados.
Conclusão
Não estamos preconizando um suicídio intelectual. Também não pretendemos anular nossas emoções e negar sua influência sobre nossa experiência religiosa. Contudo, queremos reafirmar o princípio escriturístico e doutrinário da Palavra de Deus como a base de nossa fé e seu legítimo referencial. A fé implica em uma opção pessoal, e quando optamos pelo cristianismo, aceitamos também a Bíblia como sua regra de fé e prática. É evidente que esta opção não nos exime da responsabilidade de utilizarmos hermenêutica séria e eficaz para a sua interpretação, mas cremos que a direção do Espírito Santo e o exercício do bom senso nos capacitam para esta tarefa.
Quando Jesus perguntou a seus discípulos se queriam deixá-lo, Pedro respondeu em nome dos demais: “Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras de vida eterna” (João 6:68). Tais palavras de vida eterna proferidas por Jesus estão registradas na Bíblia. Parafraseando Pedro, pergunto: Para onde iremos nós sem a Bíblia? Karl Barth, usando de ironia, acusou os defensores da teologia ortodoxa (principalmente os fundamentalistas) de fazerem da Bíblia o seu “papa de papel”. Entretanto, também afirmou que o liberalismo teológico levara o cristianismo a um “beco sem saída”, e encontrou alento para si e alimento para seu rebanho no estudo da Palavra de Deus ⁴ . Cristianismo sem Bíblia é realmente um “beco sem saída”.
A Bíblia é muito clara sobre aquilo que reivindica a respeito de si mesma, e a nossa declaração doutrinária expressa isto muito bem. Um verdadeiro batista é aquele que aceita e pratica na íntegra a nossa declaração doutrinária. Aqueles que não fazem assim não são verdadeiros batistas. Os que andam trabalhando para construir um cristianismo sem Bíblia só têm duas opções: ou reavaliam suas posições, ou usam de honestidade para assumirem que não são mais batistas. Eu, pessoalmente, prefiro continuar com a minha velha e preciosa Bíblia, mesmo que me acusem de tradicional, obtuso, ou o que mais quiserem.
Dalton de Souza Lima